sábado, julho 22, 2006

Dispersão em Barra Velha

Parece legítimo deduzir-se que a aldeia de Barra Velha abrigou, em sua origem, não apenas índios pataxó, mas também maxakalís com esses há poucos anos trazidos do interior da região e, possivelmente, botocudos das vizinhanças, subjugados na mesma época, "descendentes" dos Tupiniquim de Trancoso e Vila Verde e kamakãs -Meniã- de Belmonte. Sobre esta muito provável diversidade original, o etnônimo Pataxó prevaleceu provavelmente por ter sido destes o maior contingente, além de estar a aldeia situada em território tradicionalmente reconhecido como pataxó.

Fato é que estes Pataxó de Barra Velha romperam o século XX, muito certamente como a única comunidade exclusivamente indígena na região e aí viveram isolados de qualquer contato mais regular com a população envolvente, além dos diminutos povoados que lhes são vizinhos. Com efeito, entre 1861 e 1951 são escassíssimas as referências existentes sobre esta aldeia perdida numa das regiões então mais isoladas do Estado.

Tal isolamento seria dramaticamente rompido em 1951, em um episódio, fartamente noticiado pela imprensa de Salvador à época, que provavelmente tem sua origem alguns anos antes, quando, por ocasião da criação do Parque Nacional de Monte Pascoal pelo Decreto 12.729 de 19 de abril de 1943, as primeiras equipes técnicas visitaram a área, estabelecendo contato direto com os Pataxó. A notícia da criação do Parque é o provável motivo que levou o então líder dos pataxó, o "capitão" Honório, a empreender, em 1949, a uma inédita viagem ao Rio de Janeiro, na expectativa de obter do Marechal Rondon o direito a suas terras.

Ao que tudo indica, Honório retornou da capital com promessas de intervenção e de uma visita à área por parte do então Serviço de Proteção ao Índio (SPI), mas nenhuma presença efetiva do órgão junto aos Pataxó seria registrada nos anos seguintes. Em lugar disto, Honório e seus companheiros travariam, em suas andanças, conhecimento com dois indivíduos de identidade misteriosa que, vindo ter à aldeia e a pretexto de demarcar os limites das suas terras, estimularam os Pataxó a saquear o pequeno comércio do vizinho povoado do Corumbau, o que desencadeou uma violenta reação policial a partir das cidades de Porto Seguro e Prado, dando origem a uma série de perseguições aos Pataxó e ao início da sua dispersão pela região. Os dois forasteiros foram mortos na primeira investida policial.

Este trágico episódio, até hoje muito marcado na memória dos Pataxó, é freqüentemente percebido por muitos deles como um "mal-entendido" que causaria a perda de suas terras. Nesta versão nativa, o Parque de Monte Pascoal seria originalmente destinado aos índios, para que estes, com suas terras asseguradas, pudessem "viver como antigamente, nus, caçando e tirando mel pelas matas". O "fogo de 1951" teria fornecido o pretexto para que governantes inescrupulosos -após as mortes de Rondon e Getúlio Vargas, "protetores dos índios"- distorcessem o objetivo original, entregando o Parque para um órgão - o atual IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis) - que, a partir dos anos sessenta - e após as arbitrariedades policiais sofridas pelos Pataxó nos anos cinqüenta-, assumiria a tarefa de "perseguir os índios e tomar suas terras, como vem fazendo até hoje".

De fato, após quase duas décadas em que existiu apenas "no papel", o Parque Nacional de Monte Pascoal foi finalmente implantado em 1961. Os estudos técnicos que orientaram sua delimitação argumentam com competência pela necessidade - apesar da redução da área originalmente prevista - de proteção ao sítio histórico do Monte Pascoal e da preservação de uma faixa quase intocada da Mata Atlântica que se estende desde as bases da famosa montanha até a costa, onde se encontram, igualmente dignos de preservação, alguns dos mais extensos e ricos manguezais de todo aquele litoral. Coincidência ou não, porém, a área então delimitada incide, completamente, sobre o território tradicionalmente utilizado pelos Pataxó de Barra Velha.

Ignorados pelo órgão indigenista nacional - que vivia então a fase final de uma longa crise que levaria à sua extinção em 1967 - e tratados pelo órgão encarregado do "desenvolvimento florestal" como simples posseiros, os Pataxó de Barra Velha foram então compungidos a receber indenizações por suas parcas "benfeitorias" e deixar sua aldeia, agora inserida no Parque Nacional. A maioria dos índios resistiu a isto, sendo porém impedidos de plantar suas roças na área, situação que perdurou por dez anos até que, no início dos anos setenta, o novo órgão indigenista - FUNAI (Fundação Nacional do Índio)- finalmente implantasse sua assistência e tutela de direitos sobre esses Pataxó.

Este período, contudo, foi marcado pelo grande surto madeireiro que atingiu a região na esteira da construção da rodovia BR-101 - inaugurada em 1973 - e pela implantação de um crescente mercado de turismo que se lhe seguiu. Neste contexto, inviabilizados na utilização de suas terras tradicionais, os Pataxó são levados a se engajar como mão-de-obra nas novas atividades econômicas que se implantam na região, sendo também estimulados, a partir dos anos setenta - por pesquisadores, funcionários e comerciantes -, a desenvolver sua produção de artesanato, o que se revelaria uma alternativa interessante, capaz de preservar-lhes, em função do fluxo turístico, alguma autonomia econômica.

Ao implantar sua assistência sobre os Pataxó de Barra Velha, a FUNAI estabeleceu um acordo pouco mais que apenas tácito com o então Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), que passou a facultar aos índios o direito de plantio nas capoeiras já existentes na área do Parque e, embora tal não fosse suficiente para atender às demandas produtivas dos Pataxó, manteve-se, assim, intocada a crucial questão da legitimidade de domínio sobre as terras. Àquela altura era já irreversível o processo de dispersão dos Pataxó de Barra Velha, muitos dos quais, após perambular por locais e atividades diversos na região, voltariam a se concentrar em novos núcleos indígenas, alguns dos quais incipientemente brotados já antes dos anos sessenta.

Texto extraído de Breve história da presença indígena no extremo sul